#015 Cripto nos Balanços, Infraestrutura em Xeque e IA no Dealmaking
O setor bancário tradicional enfrenta três movimentos simultâneos que desafiam seu status quo. O Banco Central do Brasil sinaliza que criptoativos podem ganhar lugar nos balanços bancários, tirando as moedas digitais do limbo regulatório e jogando-as na arena contábil convencional. Ao mesmo tempo, gigantes de pagamentos como a Mastercard estão se reposicionando – a aquisição da Zero Hash representa não apenas uma expansão de portfólio, mas a ambição de se tornarem espinha dorsal para integrar cripto aos sistemas financeiros tradicionais. E como se não bastasse, a elite de Wall Street vê seu próprio core business intelectual na mira da OpenAI, que treina IA para automatizar a modelagem financeira e a produção de pitch books, aquelas tarefas de altíssimo valor agregado (e horas cobradas) dos banqueiros de investimento. Cada um desses movimentos, isoladamente, já seria provocativo; juntos, pintam um panorama de um sistema bancário se reinventando: seja aceitando novos ativos em seus cofres, construindo novos trilhos de inovação ou repensando o valor do trabalho humano na era das máquinas inteligentes. O recado? Nada está fora de questão. Reguladores, incumbentes e disruptores parecem concordar: é hora de quebrar paradigmas antes que eles quebrem você.
Cripto no Balanço: BACEN flerta com o Bitcoin na contabilidade dos bancos
Quando o Banco Central do Brasil (BCB) abriu, em 29 de outubro, uma consulta pública sobre regras para exposição de instituições financeiras a criptoativos, o mercado leu nas entrelinhas: o Bitcoin pode enfim entrar pela porta da frente dos bancos. A proposta do BCB segue de perto as diretrizes de Basileia, impondo requerimentos de capital sobre essas exposições e categorizando os criptoativos em subclasses prudenciais. Em termos regulatórios, isso significa dar um tratamento formal a ativos antes marginalizados – o BC propõe inclusive limites duros: criptos de risco (Grupo 2) não poderão exceder 1% do Capital Nível I dos bancos. Stablecoins totalmente lastreadas e tokens equivalentes a ativos tradicionais (Grupo 1A e 1B) receberiam tratamento de risco similar aos ativos subjacentes, ao passo que criptoativos fora desses critérios ficariam fortemente limitados. Em outras palavras, o regulador está dizendo: “cripto pode entrar no jogo, mas jogará sob nossas regras de capital e risco”.
As implicações contábeis também são profundas. Pela primeira vez, discute-se padronizar a forma como os bancos reconhecem e reportam criptoativos em seus balanços. O BCB e o Conselho Monetário Nacional já sinalizaram interesse em alinhar a contabilidade de cripto às normas internacionais (IFRS), estabelecendo critérios para reconhecimento inicial, mensuração a valor justo e divulgação transparente dessas posições. Isso corrige uma distorção: na ausência de regras, cada banco podia tratar esses ativos de forma distinta, dificultando comparações e escondendo riscos. Com a nova norma, haverá transparência e comparabilidade – as instituições precisarão evidenciar em notas explicativas detalhes de quantidade, valor justo, variações e riscos associados aos ativos digitais que tiverem em carteira. É um salto de amadurecimento institucional: sai o improviso, entra o rigor. Se implementada, a medida empurra os bancos a encarar cripto não mais como experimentos off the record, mas como itens dignos de auditoria, métricas de risco e, claro, conversa séria no comitê de ativos e passivos.
Estrategicamente, esse movimento do BACEN sinaliza que a fronteira entre banca tradicional e finanças digitais está se dissolvendo. Não se trata de o Banco Central “abraçar cripto” de forma irrestrita, longe disso. Trata-se de reconhecer que o mercado evoluiu a ponto de demandar um cinturão regulatório em torno dos criptoativos. Para os bancos, abre-se a possibilidade de diversificar (ainda que modestamente) suas reservas com ativos digitais, agora respaldados por regras claras. Para o ecossistema cripto, é um diploma de maturidade: quando o órgão que zela pela estabilidade financeira do país cria um manual de contabilidade e risco para Bitcoin e companhia, é sinal de que esses ativos saíram da fase rebelde e estão ingressando na idade adulta institucional.
Mastercard + Zero Hash: o backbone cripto da “financeirização” tradicional
Na arena das infraestruturas de pagamento, outra peça se move: a Mastercard revelou estar em negociação avançada (na casa de US$ 1,5 a 2 bilhões) para adquirir a Zero Hash, uma startup especializada em infraestrutura de criptoativos, em especial stablecoins. Para além dos números, o que interessa é a lógica estratégica. Stablecoins – criptomoedas atreladas a moedas fiduciárias como o dólar – despontam como a próxima fronteira dos pagamentos globais. Projeções indicam que os volumes transacionados via stablecoins podem atingir US$ 1 trilhão até 2030, impulsionados pela adoção institucional e remessas internacionais mais baratas e rápidas em blockchain. Visa e Stripe já mexem suas peças: a Visa desenvolve sua própria plataforma de tokenização para bancos, enquanto a Stripe pagou mais de US$ 1 bi por uma empresa de infraestrutura de stablecoins. Nesse tabuleiro, a Mastercard não quer ficar para trás – quer ser ela a prover os dutos pelos quais esse novo dinheiro digital irá fluir.
A Zero Hash, fundada em 2017, construiu exatamente esses dutos. Sua plataforma permite que empresas financeiras adicionem, de forma plug-and-play, serviços de trading cripto, custódia e liquidação em blockchain nas ofertas aos clientes. Em vez de cada banco ou fintech precisar reinventar a roda cripto, eles podem se conectar à infraestrutura da Zero Hash para transacionar ativos digitais dentro de um framework compliance robusto. A Mastercard enxergou aqui uma oportunidade de upgrade na sua relevância: de meramente processar transações com cartão, para viabilizar transações on-chain nos bastidores. Com a aquisição, a Mastercard posiciona-se como backbone da integração cripto – pronta para oferecer a bancos, corretoras tradicionais e grandes players um caminho seguro e escalável para o universo dos ativos digitais.
Há também um componente defensivo nessa história. Recentemente, a Mastercard disputou (e perdeu para a Coinbase) a compra de outra startup de infraestrutura cripto, a britânica BVNK. Ou seja, os gigantes de pagamentos estão em guerra pelo controle das infras de cripto. Quem vencer, garante não apenas novas fontes de receita, mas também a sobrevivência em um futuro onde transferir dólares tokenizados possa ser tão comum quanto passar um cartão na maquininha. A Mastercard já vinha tateando o terreno – parcerias com exchanges cripto e projetos piloto mostraram seu interesse em stablecoins como alternativa de pagamento. Ao absorver a Zero Hash, ela acelera essa curva de aprendizado e ganha um time que já processou bilhões em fluxos tokenizados. Em resumo, a aquisição a coloca um passo à frente para fazer a ponte entre o sistema bancário legado e o mundo cripto, oferecendo confiança regulatória e escala global a algo que nasceu disruptivo e fragmentado. Para os bancos tradicionais, é quase um alívio: em vez de construir do zero, poderão embarcar na locomotiva Mastercard, que vem carregada de tecnologia cripto porém com selo de qualidade de um velho conhecido do sistema financeiro.
OpenAI vs. Wall Street: o cérebro do dealmaking em automação
Não são só os ativos e a infraestrutura bancária que estão mudando – o capital humano de elite também está na berlinda tecnológica. A OpenAI, criadora do ChatGPT, deflagrou um projeto interno (codinome Mercury) com o objetivo explícito de automatizar partes cruciais do trabalho de banqueiros de investimento. Como? Treinando modelos de IA generativa em tarefas complexas como construir modelos financeiros, analisar demonstrações e até preparar apresentações de pitch para M&As, ofertas públicas e afins. E não é teoria: a empresa recrutou mais de 100 ex-banqueiros de peso – egressos de JPMorgan, Morgan Stanley, Goldman Sachs – pagando-lhes US$ 150/hora para ensinarem a máquina a replicar, passo a passo, o trabalho intelectual que jovens analistas aprendem nas madrugadas de Excel. Esses especialistas fornecem prompts, exemplos de modelagem refinada e padrões de formatação típicos de Wall Street (sim, até a fonte, margens e itálico em porcentuais) para que a IA aprenda a produzir saídas indistinguíveis do trabalho humano meticuloso.
O que está em jogo aqui é o próprio DNA do investimento bancário. Por décadas, a fórmula foi clara: contrata-se um batalhão de analistas juniores, exaure-se eles em 100 horas semanais de trabalho repetitivo (valorações, decks, due diligence), e em troca eles absorvem conhecimento e cultura para um dia assumirem o posto dos atuais sócios. É quase um rito de passagem – tough but necessary. Agora, imagine um mundo onde um agente de IA pode gerar em minutos um modelo financeiro completo, ajustar cenários, preparar gráficos e talvez até rascunhar as narrativas estratégicas de uma transação. As tarefas tediosas – modelagem, entrada de dados, desenho de apresentações – desaparecem do job description dos juniores. Seria o paraíso... certo? Muitos jovens banqueiros não têm tanta certeza. Depois de anos reclamando do trabalho braçal, ironicamente agora temem perder o aprendizado que vem embutido nele. Sem “sofrência”, sem ganho – no pain, no gain. Executivos veteranos ecoam essa preocupação: “Estamos prontos para substituir muitas tarefas básicas por máquinas, mas o que isso significa para o desenvolvimento de talentos a longo prazo?” provocou Nir Bar Dea, CEO da Bridgewater Associates. Em bom português: se você pular direto do Excel automatizado para o cliente, pode faltar repertório na hora de pensar conceitualmente e liderar negociações complexas.
Do ponto de vista da elite financeira, há dois ângulos a considerar. No curto prazo, ferramentas de IA podem elevar a produtividade e até a qualidade das análises – erros de fórmula diminuem, versões de apresentações se atualizam em um clique, permitindo que os seniores foquem mais na estratégia e no relacionamento com o cliente. A eficiência pode se traduzir em fechar negócios mais rápido, com times reduzidos. Porém, no longo prazo, essa mesma elite pode se ver sem um pipeline de talentos experientes, porque a base da pirâmide não “aprendeu a pegar no pesado”. Além disso, se o core intelectual do dealmaking – que envolve criatividade financeira, identificação de sinergias, precificação de ativos – começa a ser compartilhado com algoritmos, o mojo exclusivo dos grandes bancos de investimento pode ser diluído. Executivos clientes poderiam questionar: “Preciso pagar milhões em fees se uma parte substancial do trabalho meu banco está rodando numa máquina?” Ou ainda, novas boutiques enxutas munidas de IA podem desafiar o oligopólio dos grandes bancos oferecendo análises sofisticadas a custo menor, já que não precisam sustentar um exército de analistas.
É claro que, na prática, a adoção será gradual. Reguladores e os próprios bancos vão ponderar riscos: quem assume a responsabilidade se um modelo gerado por IA tiver um lapso e precificar mal um negócio? Provavelmente sempre haverá uma camada humana de verificação e julgamento final – pelo menos enquanto a IA não provar sua infalibilidade (se é que um dia isso ocorrerá). Mas o precedente está aberto. Se em 2024 discutíamos IA escrevendo relatórios de research, agora em 2025 falamos da IA fazendo a modelagem do valuation em si. O mercado financeiro, tão orgulhoso de seu intelecto e intuição, está diante de uma automação que atinge seu núcleo cerebral. A inteligência de máquina deixa de ser apenas um assistente e se candidata a sócio silencioso na próxima geração de deals.
Links e Fontes
Exame: Banco Central abre consulta pública sobre exposição a criptomoedas por instituições financeiras
Coindesk: Mastercard mira aquisição da Zero Hash por quase US$ 2 bilhões em aposta nas stablecoins: relatório
Robb Report Brasil: OpenAI recruta ex-banqueiros para treinar IA em modelagem financeira e automatizar tarefas
Conclusão: E agora, banco?
A edição #015 da TrendFi deixa claro que não há trincheira segura: os bancos e players tradicionais precisam dançar conforme a nova música – seja incorporando criptoativos com responsabilidade, seja atualizando suas infraestruturas com ajuda de parceiros tech, seja repensando o papel humano nos investimentos. Ficamos com a pergunta: o que define um banco na próxima década? Ativos inovadores, redes híbridas humano-IA, ou tudo isso junto?
A discussão está lançada e você faz parte dela. Conte para nós o que achou destas tendências e para onde enxerga o futuro caminhando. Se esta análise trouxe insights válidos, não deixe de compartilhar com sua equipe e pares – vamos ampliar o debate. Nos vemos na próxima TrendFi, e até lá, permaneça antenado e disruptivo.
