#012 Bancos do G7 inauguram a era das stablecoins globais
O que acontece quando os pesos-pesados do sistema bancário tradicional resolvem falar a língua das criptomoedas? A cena antes inimaginável de bancos concorrentes unindo forças em torno de um token digital está se desenhando. Uma coalizão inédita dos maiores bancos das economias do G7 sinaliza uma virada histórica: a criação conjunta de uma stablecoin global para pagamentos internacionais. A iniciativa provoca perguntas sobre quem conduzirá os “trilhos” financeiros do futuro: as fintechs de cripto ou os veteranos bancos internacionais? Sem alarde e com análise direta, a 12ª edição da newsletter TrendFi disseca essa movimentação histórica, suas motivações e suas possíveis consequências em três dimensões: operacional, competitiva e sistêmica.
Em 10 de outubro de 2025, um comunicado liderado pelo BNP Paribas revelou que um grupo de dez bancos globais de primeira linha se uniu para explorar a emissão de uma nova forma de dinheiro digital, lastreado 1:1 em reservas bancárias e disponível em blockchains públicas, com foco nas moedas do G7. Entre os participantes confirmados estão Banco Santander, Bank of America, Barclays, BNP Paribas, Citigroup, Deutsche Bank, Goldman Sachs, MUFG (Japão), TD Bank (Canadá) e UBS. Juntos, eles cobrem as principais divisas das maiores economias – dólar americano, euro, libra esterlina, iene e dólar canadense, sinalizando uma ambição de alcance verdadeiramente global. O objetivo declarado é avaliar se uma oferta setorial colaborativa pode trazer os benefícios dos criptoativos para pagamentos, aumentando a concorrência no mercado sem comprometer a conformidade regulatória e a gestão de risco. Em outras palavras, os bancos pretendem uma alternativa “compliant” às stablecoins privadas existentes, integrando tecnologia de ponta sem abrir mão de governança e segurança tradicionais.
Gráfico: Capitalização de mercado das stablecoins lastreadas em dólar (linha roxa) aproxima-se de US$300 bilhões, enquanto stablecoins em euro permanecem abaixo de US$500 milhões. O domínio das stablecoins em USD reflete a hegemonia americana nos pagamentos digitais (Fonte: CoinDesk/Reuters).
Essa movimentação ocorre num contexto em que stablecoins estão se tornando protagonistas nas finanças digitais. Em apenas alguns anos, o valor de stablecoins em circulação global aproximou-se de US$ 300 bilhões, sendo a vasta maioria atrelada ao dólar norte-americano. A stablecoin privada Tether (USDT) sozinha responde por cerca de US$ 179 bilhões desse montante, algo em torno de 60% de todo o mercado em 2025. Em contraste, stablecoins em outras moedas são minúsculas, por exemplo, todos os tokens atrelados ao euro somavam menos de €620 milhões recentemente. Esse desequilíbrio tem acendido o alerta de autoridades fora dos EUA: a Europa, por exemplo, vê risco em deixar a infraestrutura de pagamentos digitais dominada por dólares e por emissores estrangeiros. Não por acaso, um consórcio de nove bancos europeus (incluindo ING, UniCredit e others) anunciou planos para lançar uma stablecoin em euro até 2026, buscando autonomia estratégica em pagamentos frente à hegemonia dos EUA. Christine Lagarde, presidente do BCE, já advertia que stablecoins privadas colocam em risco a política monetária e a estabilidade financeira, preferindo soluções públicas como um euro digital.
Do lado dos EUA, o ambiente regulatório também evoluiu. Em julho de 2025, foi sancionada a lei apelidada GENIUS Act pelo presidente Donald Trump, estabelecendo um marco para stablecoins de pagamento. A lei exige reserva 1:1 em ativos seguros e proíbe emissores de pagar juros sobre stablecoins, um detalhe notável, pois os bancos temiam que stablecoins com rendimento pudessem atrair depósitos para fora do sistema bancário. Com esse respaldo legal e querendo evitar “uberização” do dinheiro, os grandes bancos agora se sentem encorajados a entrar no jogo. Importante notar que essa aliança G7 não nasceu do nada: meses antes, reportagens já indicavam que JPMorgan, Bank of America, Citi e Wells Fargo discutiam a criação de uma stablecoin consorcial em dólar. Ou seja, as engrenagens vinham se movendo nos bastidores.
É impossível falar desse movimento sem destacar a JPMorgan Chase. Pioneiro entre os bancos em blockchain, o JPMorgan não apenas está envolvido nas discussões como traz uma experiência robusta na bagagem. Sua rede privada Onyx (recentemente rebatizada como Kinexys) opera desde 2020 uma stablecoin própria, a JPM Coin, usada para transferências internas entre clientes institucionais. O sucesso foi significativo: o sistema já processava mais de US$ 2 bilhões por dia em 2024, totalizando US$ 1,5 trilhão liquidados desde o lançamento. Trata-se de um “laboratório vivo” do que as stablecoins bancárias podem oferecer: liquidação 24/7 em tempo real de valores transnacionais, reduzindo dependência de redes como Swift. Agora, o JPMorgan avança além do ambiente privado: a empresa realizou projetos-piloto de um depósito tokenizado (JPM Deposit Token, JPMD) em blockchain pública, visando disponibilizá-lo tanto a seus clientes quanto a clientes de bancos correspondentes. Jamie Dimon, CEO do JPMorgan, já declarou que quer seu banco “como um jogador” nesse espaço, mesmo mantendo ceticismo quanto a cripto não-regulada. Em suma, a JPMorgan consolida uma estratégia dual: desenvolver internamente capacidade em blockchain (Onyx/Kinexys) e participar de esforços setoriais mais amplos. Posição vantajosa para liderar a curva de aprendizado enquanto seus pares começam a experimentação.
Impacto Operacional: Novo Rail de Pagamentos para o Sistema Bancário
No plano operacional, a entrada coordenada dos grandes bancos em stablecoins promete redesenhar a infraestrutura de pagamentos internacionais. Hoje, transferências interbancárias transfronteiriças frequentemente dependem de intermediários e da rede Swift, incorrendo em prazos de +2 dias úteis para liquidação e custos elevados. Com uma stablecoin consorcial, os bancos vislumbram um rail (trilho) alternativo, sempre aberto: tokens bancários liquidados em minutos ou segundos, 24 horas por dia, 7 dias por semana. Na prática, um pagamento em dólar de Nova York para Tóquio poderia ocorrer quase instantaneamente via blockchain, sem esperar janelas de operação de câmaras tradicionais. Isso reduz atrito e risco operacional (menos dependência de múltiplas correspondentes) e libera capital preso em reservas de liquidez, já que a compensação é em tempo real.
Do ponto de vista dos bancos, essa iniciativa equivale a criar um Livro Razão Digital interbancário compartilhado, onde cada stablecoin representa um crédito imediato contra uma das instituições emissoras. A tecnologia blockchain assegura a imutabilidade e rastreabilidade dessas transações, um ganho de transparência sobre o sistema legado de mensagens bancárias. É importante frisar que os bancos planejam usar blockchains públicas, ou seja, plataformas abertas (como possivelmente Ethereum ou similares), porém com as devidas permissões e controles de conformidade envolvidos. Isso difere de iniciativas anteriores puramente privadas: aqui busca-se o equilíbrio entre alcance global e segurança/segregação de participantes autorizados.
Naturalmente, implantar esse novo trilho requer superar desafios operacionais. Um deles é a interoperabilidade técnica e legal entre jurisdições. Cada stablecoin atrelada a moedas do G7 estará sujeita à regulamentação local (Fed/FDIC no dólar, BCE no euro, etc.), o que traz risco de fragmentação se não houver padronização clara. Harmonizar normas para que esses tokens conversem entre si é tão importante quanto o código subjacente. Os bancos no consórcio terão que definir protocolos comuns de rede, liquidez e liquidação – possivelmente formando uma câmera de compensação multimoeda em blockchain. Sem coordenação, poderíamos terminar com “feudos digitais” isolados por moeda ou por emissor, o que minaria os ganhos de eficiência.
Outro ponto operacional é a gestão de liquidez e reservas. Pela natureza do projeto, cada stablecoin será 100% lastreada em reservas de alta qualidade (depósitos em banco central, títulos públicos de curto prazo, etc.), conforme exigido por regulações como o GENIUS Act. Isso implica que os bancos precisarão segregar esses ativos, não podendo empregá-los livremente em empréstimos de longo prazo. Contudo, há um incentivo financeiro claro: as reservas de stablecoins podem ser investidas em títulos públicos remunerados, gerando receita. Não é segredo que a Tether, por exemplo, obteve lucro de US$ 4,9 bilhões apenas no 2º trimestre de 2023 aplicando seus colaterais em títulos e outros investimentos. Os bancos tradicionais, ao entrarem nesse segmento, vislumbram abocanhar essa fonte de ganhos, algo que pode inclusive compensar a redução de certas tarifas de transferência, se o modelo for bem-sucedido. Em resumo, operacionalizar stablecoins significa para os bancos um exercício delicado: conciliar inovação em velocidade e disponibilidade com a robustez financeira e regulatória esperada de instituições sistêmicas.
Por fim, há aspectos de cibersegurança e continuidade a considerar. Migrar parcelas do fluxo financeiro para uma rede blockchain amplia a superfície de ataque potencial, seja via exploits de contrato inteligente, seja via tentativas de fraude digital. Os bancos deverão investir pesado em auditorias de código, monitoramento de redes e redundância, garantindo que o novo rail seja tão confiável quanto (ou mais que) as redes legadas. A experiência da JPMorgan com a Onyx/Kinexys ilustra essa curva de aprendizado: desde 2020, a JPM teve que integrar sua plataforma blockchain aos sistemas centrais, treinar times operacionais e estabelecer procedimentos de contingência para uma rede que não “fecha” nunca. Esse aprendizado agora poderá ser compartilhado com os demais. Em suma, no grau operacional a iniciativa representa modernização da tubulação financeira: pagamentos globais mais rápidos e automatizados, porém exigindo dos bancos adaptações em infraestrutura, compliance e gestão de risco compatíveis com a era digital.
Impacto Competitivo: Bancos vs. Tether/Circle – Equilíbrio de Poder em Jogo
No front competitivo, a coalizão de stablecoins bancárias aponta diretamente ao domínio das stablecoins privadas como Tether (USDT) e USD Coin (USDC), emitidas respectivamente por empresas como Tether e Circle. Hoje essas moedas privadas suprem uma necessidade que o sistema bancário não atendia: transações digitais em tempo real, especialmente no ecossistema cripto e em pagamentos internacionais de varejo. O movimento dos bancos sugere: “vamos tomar de volta esse terreno”. Mas quais diferenciais eles trazem e como podem mudar o equilíbrio de poder?
Primeiramente, credibilidade e conformidade regulatória passam a ser o cartão de visitas das stablecoins bancárias. Diferentemente de um emissor como a Tether – sediada em paraíso fiscal, com histórico opaco de auditorias – um JPMorgan ou Deutsche Bank opera sob rigorosos requisitos de capital e fiscalização constante. Essa diferença de pedigree não é trivial: grandes instituições financeiras dispõem de governança corporativa estabelecida, balanços auditados e, sobretudo, acesso a linhas de liquidez de bancos centrais em caso de estresse. Assim, um token emitido por esses bancos pode inspirar confiança maior nos usuários tradicionais e nos reguladores. Transparência também tende a melhorar pois é razoável esperar divulgações periódicas de reservas, talvez até em tempo real on-chain, algo que as regras do consórcio provavelmente padronizarão. Em outras palavras, as stablecoins do G7 pretendem ser “same same, but different” em relação às cripto-stables: oferecem a mesma utilidade de um dólar digital, porém com o selo de qualidade de instituições centenárias e supervisão governamental explícita.
Enquanto isso, para as incumbentes Tether e Circle, o alcance global foi conquistado na base da adoção nos mercados de criptoativos. USDT tornou-se a moeda veicular em exchanges de criptomoedas pelo mundo, de modo que seu valor deriva principalmente dessa network effect. Já os bancos consorciados trazem outra rede nas mãos: a rede de clientes corporativos e comerciais existente. Imagine multinacionais podendo liquidar pagamentos entre si via stablecoin bancária, ou grandes plataformas de e-commerce integrando um token “JP Morgan USD” como forma de pagamento confiável. A base de usuários pode se expandir para muito além dos traders de Bitcoin. Contudo, cabe ponderar que essas bases não se sobrepõem totalmente: usuários de cripto nativos valorizam a permissionless (ausência de controles rígidos) – característica que provavelmente não estará presente nos stablecoins bancários, já que o consórcio deve impor KYC rigoroso e potencialmente blacklist de endereços ilícitos. Assim, num primeiro momento, Tether pode continuar reinando em aplicações offshore e na economia cripto paralela, enquanto os bancos focam em casos de uso institucional e pagamentos corporativos onde conformidade é mandatória.
Um aspecto crítico será a estratégia de liquidez e conversão dessas moedas. Tether e Circle construíram mecanismos de redenção (resgate 1:1) que funcionam, ainda que com fricções – Circle permite resgates em prazos curtos via bancos parceiros; a Tether historicamente restringia resgates diretos para montantes elevados, tornando a liquidez secundária (em exchanges) a principal. Os bancos, por sua vez, podem oferecer resgate instantâneo on-demand: afinal, uma stablecoin emitida por, digamos, BNP Paribas nada mais é do que um depósito à vista tokenizado. O cliente poderia converter o token em dinheiro na conta bancária com um clique, possivelmente sem custos (especialmente se for seu banco de relacionamento). Essa liquidez nativa, lastreada nos trilhões que esses bancos movimentam, impõe forte concorrência às stablecoins independentes. Além disso, makers de mercado profissionais tendem a arbitrar qualquer discrepância de cotação entre um “USDT bancário” e o dólar real, mantendo o peg muito próximo. Isso só será válido, claro, se os bancos permitirem que também não-clientes transacionem seus tokens; caso fechem o ecossistema apenas a participantes permissionados, podem perder a chance de ver a stablecoin negociada amplamente. A tendência, contudo, é de abertura gradativa com controles: de acordo com o consórcio, a intenção é “aumentar a concorrência no mercado” com um ativo estável em blockchain pública, o que implica buscar ampla circulação.
Quanto à governança, a colaboração entre concorrentes naturais (bancos diferentes) será um teste de fogo. Emissores como Tether e Circle tomam decisões internas sobre políticas de reservas, listagens, atualizações de contrato etc. No caso do consórcio G7, é provável que criem um organismo de governança conjunta ou empresa-veículo para coordenar padrões – similar a iniciativas passadas como o Fnality/USC (Utility Settlement Coin) e mesmo o consórcio USDF nos EUA. Fontes indicam que a Provenance Blockchain e a fintech Figure (envolvidas no USDF) poderiam ser instrumentalizadas nesse projeto, oferecendo uma base tecnológica interoperável. A governança do consórcio tende a ser mais lenta e burocrática, porém traz a vantagem de diluir riscos: nenhuma instituição controlaria sozinha a stablecoin, ao contrário da Circle ou Tether. Para o mercado, isso pode significar decisões mais previsíveis e aderentes à regulação, ainda que menos ágeis na resposta a inovações (por exemplo, integração com protocolos DeFi poderá ser debatida exaustivamente entre os bancos antes de aprovada).
Do ponto de vista dos emissores privados, a entrada dos bancos é um sinal de validação do modelo de negócio – stablecoins viraram mainstream – mas também uma ameaça direta. A Circle, emissora da USDC, já vinha buscando se alinhar a regulações e se integrar no sistema bancário (tentou carta bancária nos EUA, sem sucesso até agora). Com bancos incumbentes emitindo seus próprios tokens, a Circle pode virar parceira ou competidora feroz. Um cenário possível é consolidação ou parceria: bancos menores podem adotar a infraestrutura de um dos consórcios, ou até firmar acordos com Circle para emissão conjunta sob compliance. Já a Tether provavelmente continuará atuando à margem do establishment, atendendo mercados onde há demanda por dólar digital mas pouca supervisão (bolsas estrangeiras, países com controles cambiais, etc.). Ainda assim, mesmo nesse nicho, a Tether pode enfrentar pressão se as stablecoins “oficiais” tomarem boa fatia do volume global, especialmente com apoio de governos do G7.
Em síntese, no grau competitivo a iniciativa dos bancos é um divisor de águas. Eles trazem peso institucional e promessas de segurança que podem erodir a vantagem pioneira de USDT/USDC, ao menos junto a usuários que valorizam compliance e facilidade de integração bancária. Conforme analistas apontam, iniciativas G7 como essa podem legitimar as stablecoins como instrumento financeiro de vez, fazendo-as migrar de um mercado de US$300 bi para um trilionário, porém sob novos guardiães. Ainda restam perguntas: qual será a atratividade desses tokens se os bancos não puderem pagar juros ao portador (devido à proibição legal de stablecoins remuneradas)? Poderão as empresas de tecnologia lançar suas próprias versões para competir (por exemplo, a PayPal já lançou sua stablecoin, PYUSD, e Big Techs podem se mexer)? Por ora, os bancos tomaram a dianteira de forma coordenada, e isso por si só já muda a percepção do mercado: de que stablecoin não é mais terra de ninguém, mas sim um terreno onde os titãs de Wall Street, Frankfurt, Londres e Tóquio decidiram fincar bandeira.
Impacto Sistêmico: Reordenando a Arquitetura Financeira Global?
No nível sistêmico, as implicações de uma rede de stablecoins lastreadas em moedas fortes por bancos globais podem ser profundas, comparáveis a poucas inovações na história recente (já há quem diga ser “o experimento mais audacioso em dinheiro digital desde a criação do Swift”). De um lado, vislumbra-se uma integração inédita entre o sistema bancário tradicional e a tecnologia de registros distribuídos (DLT), potencialmente definindo um novo padrão para pagamentos internacionais. De outro, há receios de deslocamentos de liquidez entre países, efeitos sobre soberania monetária e concentração de poder financeiro em novas bases.
Para as economias desenvolvidas do G7, essa iniciativa pode reforçar a posição de suas moedas no centro das transações digitais globais. Uma análise da própria JPMorgan estimou que a proliferação de stablecoins de dólar e similares poderia elevar a demanda global por dólares em US$ 1,4 trilhão até 2027, solidificando ainda mais o papel do dólar como moeda-chave na economia digital. Ou seja, se hoje muitos países já são “dolarizados informalmente” via cédulas físicas ou depósitos em bancos correspondentes, amanhã poderão estar dolarizados via tokens circulando em carteiras digitais. Isso, claro, amplifica a influência geopolítica dos emissores de moedas de reserva. Não surpreende que autoridades europeias discutam como fomentar stablecoins em euros para contrabalançar a dominação americana nessa seara pois ninguém quer ficar para trás na corrida dos trilhos financeiros do futuro. Bancos centrais também avançam em projetos de Moedas Digitais de Banco Central (CBDCs), mas curiosamente o sucesso das stablecoins bancárias privadas pode aliviar a pressão por CBDCs de atacado: se os bancos comerciais entregarem uma solução funcional, reguladores podem preferir apoiá-la em vez de competir diretamente.
Entretanto, para países emergentes e mercados periféricos, o advento de stablecoins G7 traz um potencial efeito colateral adverso: fuga de capitais e desintermediação local. Stablecoins em dólar já são usadas por populações de países com moeda fraca como reserva de valor ou hedge contra inflação. Com grandes bancos facilitando esse acesso de forma segura e massificada, é concebível que volumes crescentes de depósitos sejam convertidos em tokens de dólar/euro, escapando dos bancos domésticos. Um estudo da Standard Chartered alertou que a difusão de stablecoins fortes pode subtrair cerca de US$ 1 trilhão de economias emergentes até 2028 devido à migração de depósitos para fora. Essa “dolarização digital” pode enfraquecer a capacidade de crédito de bancos locais (menos depósitos implicam menos recursos para emprestar internamente) e até forçar bancos centrais emergentes a gastar reservas defendendo suas moedas. Em suma, há um risco de agravamento das disparidades monetárias globais: moedas fracas ficam ainda menos utilizadas, enquanto dólares, euros e ienes digitais permeiam todos os cantos.
Outro aspecto sistêmico é a difusão da fronteira entre dinheiro público e privado. Hoje, o dinheiro que usamos ou é emitido pelo banco central (espécie, reservas bancárias) ou pelos bancos comerciais (depósitos garantidos parcialmente). As stablecoins bancárias criam uma situação híbrida: são dinheiro privado (passivo dos bancos) circulando fora dos sistemas fechados, quase como uma moeda independente. Se esse ecossistema crescer muito rápido “à margem”, reguladores temem a criação de um sistema monetário paralelo antes que as regras completas estejam em vigor. Por exemplo, como garantir que a política monetária (definição de juros pelos BCs) transmita seus efeitos se boa parte das transações ocorrem via tokens? Os bancos argumentariam que, sendo stablecoins equivalentes a depósitos, tudo continua sob controle – mas na prática, se esses tokens ficarem acessíveis a não-correntistas globalmente, os bancos centrais perdem visibilidade e talvez eficácia de certas medidas. A regulação do GENIUS Act nos EUA e do MiCA na Europa buscam justamente trazer esse universo para dentro do perímetro regulado antes que ganhe vida própria. Autoridades poderão exigir que stablecoins sistemicamente relevantes mantenham certas métricas (liquidez extra, acesso a redes de emergência). No limite, bancos centrais podem integrar-se às redes: por exemplo, permitir que a conversão stablecoin bancária <-> moeda fiduciária ocorra instantaneamente via contas de reserva (há discussões sobre “deposit tokens” serem reconhecidos como forma de depósito coberto por seguro, etc.). Tudo isso está em evolução.
Uma consequência interessante é a reinserção dos grandes bancos como “guardiães” também no mundo cripto/tokenizado. Nos últimos anos, muito se falou sobre fintechs e redes descentralizadas destronarem bancos. Se o consórcio G7 der certo, veremos uma espécie de recentralização sobre novas bases: bancos controlando stablecoins e, possivelmente, oferecendo custódia e serviços relacionados em blockchain. Isso pode limitar o espaço de empresas puramente cripto ou mesmo de Big Techs no domínio dos pagamentos digitais. Em vez de termos um “Facebook Libra” (projeto que foi barrado) circulando globalmente, teríamos um token multi-banco aprovado. Para os decisores de política, talvez seja um mal menor uma vez ser preferível que bancos regulados detentores de licenças conduzam a inovação, do que players fora do alcance regulatório. No entanto, isso consolida ainda mais o oligopólio bancário: os mesmos gigantes que controlam o crédito e os fluxos internacionais passariam a ditar as regras também na infraestrutura blockchain de pagamentos. Há receios de poder de mercado e interoperabilidade: e se cada consórcio G7 criar uma rede não compatível com outra (por exemplo, um consórcio liderado por bancos americanos e outro por europeus)? Poderíamos trocar o monopólio da Swift por duopólios ou oligopólios de redes blockchain, fragmentando novamente o cenário. Por isso, a harmonização global será fundamental – entidades como BIS (Banco de Compensações Internacionais) e o FSB já acompanham de perto esses pilotos para sugerir padrões globais.
Em termos de infraestrutura global de pagamentos, um sucesso das stablecoins bancárias implicaria menos dependência de sistemas legados como correspondent banking, Swift, câmaras locais, etc. Isso não significa que essas redes morrem, provavelmente continuarão servindo certos fluxos, mas o volume migraria. Imagine exportadores e importadores trocando stablecoins diretamente e usando smart contracts para liquidar etapas de uma carta de crédito. Ou investidores internacionais comprando títulos em mercados estrangeiros e recebendo cupons via stablecoin instantânea. A liquidação atômica (simultânea) de transações de valores mobiliários com tokens de moeda (conhecido como DvP – Delivery versus Payment) ganha agilidade, o que já está nos planos (os bancos veem seus stablecoins também como ponte para tokens de títulos, ações digitais etc. no futuro próximo). A longo prazo, poderemos testemunhar uma arquitetura financeira global mais integrada, onde fronteiras nacionais importam menos para o movimento do dinheiro, com consequências ambíguas, pois eficiência vem de mãos dadas com maior interconexão (e portanto potencial contágio em crises).
Resumindo, o impacto sistêmico dessa coalizão pode ser revolucionário mas requer equilíbrio fino entre inovação e estabilidade. Se bem-sucedida, a iniciativa dos bancos do G7 poderá baratear e acelerar o comércio internacional, reduzir a dependência de intermediários e estimular a inclusão financeira (imagine migrantes enviando remessas em minutos usando uma stablecoin bancária de reputação sólida, em vez de cash ou operadores caros). Porém, também carrega o potencial de deslocar riscos: tirar fundos de economias frágeis, criar um ambiente de competição desigual entre moedas e embaralhar a distinção entre dinheiro estatal e privado. Reguladores terão de acompanhar de perto e eles já estão cientes. A UE, por exemplo, já sinaliza que no euro digital (CBDC) pretendido poderá impor limites de posse (ex: €3.000 por indivíduo) para evitar vazamentos massivos de depósitos dos bancos comerciais. Medidas semelhantes podem ser pensadas em relação a stablecoins: tetos por wallet, ou exigência de “redesconto” compulsório em certas situações.
No fim das contas, a coalizão bancária das stablecoins G7 representa uma tentativa do status quo de se reinventar e reafirmar soberania sobre os trilhos financeiros do século XXI. Em vez de verem fintechs e cripto-startups conduzirem a disrupção, os bancos estão dizendo: nós mesmos faremos, sob nossas regras (e as que já seguimos). É uma jogada audaciosa e talvez necessária para que permaneçam relevantes. Resta acompanhar se conseguirão inovar sem reproduzir as mesmas limitações estruturais que buscam solucionar. Se obtiverem êxito, talvez em alguns anos o envio de dinheiro para outro país seja tão simples quanto enviar um e-mail e saberemos que por trás daquele token está o respaldo de bancos que atravessaram séculos, agora adaptados aos novos tempos. Em caso de fracasso ou fragmentação, poderemos ver um retorno à prancheta, ou o florescimento de soluções alternativas (incluindo aqui moedas digitais de bancos centrais). Decisores do setor financeiro precisam, portanto, acompanhar de perto esses desdobramentos, pois o que está em jogo é nada menos que a próxima geração da infraestrutura monetária global construída em blockchain, mas com a chancela dos guardiões de sempre.
🔗 Sinais do Sistema
Três links que reforçam (ou tensionam) a conversa:
Tesouro e BC barram “Reserva de Bitcoin” O Tesouro Nacional e o Banco Central articularam a retirada de pauta do PL 4.501/2024, que destinava até 5% das reservas internacionais a BTC. A justificativa oficial foi risco de volatilidade, liquidez e reputação para a política cambial. O recado é claro: cripto como reserva soberana segue fora do horizonte brasileiro no curto prazo.
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PIX Parcelado adiado para o fim de outubro O Banco Central comunicou no Fórum Pix que a regulamentação do Pix Parcelado fica para a última semana de outubro. A funcionalidade replica a dinâmica do parcelado com juros, com liquidação imediata para o recebedor e pagamento em prestações pelo pagador. Potencial de impacto competitivo no crédito de pequeno tíquete e pressão adicional sobre adquirência e cartão.
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