#011 Stablecoins saem da zona cinzenta para o câmbio oficial
O Banco Central tirou as stablecoins da sombra e as colocou no trilho oficial do câmbio. O que antes passava como “meio de pagamento digital” agora precisa falar a língua do eFX: autorização, rastreabilidade, transparência de custo. Não é um gesto contra cripto; é um recado claro de que dólar tokenizado continua sendo dólar e, no Brasil, dólar obedece a regra de câmbio.
Nos anos 1990, muita gente conhecia o “dólar da doleira”. Hoje, o atalho ganhou UX e latência de milissegundos: com dois cliques, qualquer um transforma reais em um dólar digital e o envia para fora. A Consulta Pública 124/2025 é a resposta institucional a esse descolamento entre experiência e governança: mesmo com interface nova, as obrigações antigas permanecem.
Nesta edição, destrincho o que muda de forma prática e sem barulho. Primeiro, o que acontece na operação das plataformas e fintechs quando o atalho some e o compliance sobe. Depois, como isso reorganiza o campo regulatório e nivela a disputa entre stablecoins e produtos bancários tokenizados. Por fim, o tabuleiro macro: política cambial, soberania do real e os trilhos digitais que podem conectar o Brasil a uma liquidação 24/7, sem abrir mão do perímetro prudencial.
📌 Introdução: Uma ofensiva estratégica no “dólar digital”
Não é todo dia que o Banco Central do Brasil (BC) mira diretamente uma brecha regulatória e declara o fim da terra de ninguém para as stablecoins. Foi exatamente isso que aconteceu na Consulta Pública nº 124/2025, na qual o BC propõe equiparar as operações internacionais com stablecoins às de câmbio tradicional. Em outras palavras, o “dólar digital” entra na mira cambial. Essa iniciativa tem um peso notável: stablecoins – antes operando em uma zona cinzenta entre fintechs e exchanges – passam a ser tratadas como moeda estrangeira tokenizada, sujeitas às mesmas regras de uma remessa oficial. A proposta provocou debates acalorados. Seria o fim das transações cripto sem supervisão ou o nascimento de uma nova era de integração entre finanças tradicionais e digitais?
Com um tom provocativo e autoral, analisamos abaixo o contexto e os impactos múltiplos dessa medida para o sistema financeiro.
Contexto regulatório: do câmbio ao cripto, a resposta do BC às stablecoins
A movimentação do BC não surgiu do vazio, ela é fruto de uma evolução legal e regulatória. Tudo começou com a aprovação da nova Lei de Câmbio (Lei 14.286/21), que modernizou o arcabouço cambial brasileiro, permitindo inclusive serviços de pagamento internacionais por meios digitais (eFX). Paralelamente, a explosão do mercado de criptoativos levou ao Marco Legal dos Criptoativos (Lei 14.478/22), que definiu “ativos virtuais” e estabeleceu bases para a regulação de exchanges e afins. Em 2023, um decreto presidencial designou o Banco Central como órgão responsável por regular e supervisionar os prestadores de serviços de ativos virtuais (PSAVs) – incluindo corretoras, custodiante e emissores de stablecoins.
Desde então, o BC vem construindo um arcabouço robusto para o mercado cripto, sempre com o olhar atento às stablecoins. Já em 2024, lançou consultas públicas (CPs 109, 110 e 111/2024) sobre regras para PSAVs, com normas finais esperadas para 2025. Um ponto polêmico dessas propostas foi a restrição à autocustódia de stablecoins: o BC sugeriu vedar que corretoras transfiram stablecoins diretamente para carteiras pessoais dos usuários. A justificativa? Stablecoins atreladas a moedas fortes (como dólar) podiam servir para driblar regras de câmbio e lavagem de dinheiro, escapando do alcance das autoridades. Em redes blockchain abertas, o BC não consegue bloquear ou controlar essas transações – daí a estratégia de concentrar a circulação dessas moedas em intermediários regulados, dificultando a fuga para a sombra. O recado foi claro: enquanto indivíduos controlarem stablecoins livremente, haverá brechas para evasão e ilícitos.
Chegamos assim à Consulta Pública 124/2025. Publicada em 19/09/2025, ela propõe alterar a Resolução BCB nº 277/2022 (que regulamenta o eFX) para eliminar de vez as brechas envolvendo stablecoins. O BC enquadra expressamente as transações internacionais com ativos virtuais estáveis dentro do regime cambial tradicional. Essa medida alinha-se a um objetivo maior de modernização do sistema financeiro nacional, seguindo melhores práticas internacionais. Entidades de mercado veem o movimento como resposta à rápida expansão de soluções digitais que facilitam compras e remessas ao exterior via cripto. Em comunicado, o diretor de Regulação do BC, Gilneu Vivan, destacou que a proposta busca “maior segurança, transparência e eficiência” nas operações internacionais, abrindo espaço à inovação e inclusão financeira. Ou seja, integrar as stablecoins ao guarda-chuva regulatório não é apenas reprimir riscos, é também legitimar essas ferramentas sob regras claras.
No contexto global, o Brasil posiciona-se ao lado de jurisdições que correm para enquadrar stablecoins. Bancos centrais de emergentes temem a siphonagem de depósitos e a fuga de capitais via stablecoins, que permitem cidadãos acessarem dólares virtuais facilmente. Órgãos como o BIS e o FMI já alertaram: a proliferação de stablecoins em economias em desenvolvimento pode minar a política monetária e a soberania financeira ao facilitar a dolarização informal e a evasão cambial. Vale lembrar que o Brasil figura entre os dez países com maior adoção de criptoativos. Boa parte desse volume ocorre via stablecoins, muitas vezes fora do alcance de mecanismos oficiais. Assim, trazer essas transações para dentro do perímetro regulatório tornou-se prioridade. Não por acaso, o BC faz parte de uma tendência: nos EUA, foi aprovada uma lei federal para stablecoins: o GENESIS/GENIUS Act ; na Europa, o regulamento MiCA impõe requisitos estritos a tokens lastreados em moeda. A agenda 2025-2026 do Banco Central já elencava a consolidação das regras de ativos virtuais e mencionava stablecoins em discussão legislativa. Inclusive, um projeto de lei específico (PL 4308/2024) tramita no Congresso para regulamentar stablecoins, exigindo autorização do BC para emissão atrelada a moedas estrangeiras e reservas 100% lastreadas. O autor do PL, Dep. Aureo Ribeiro, argumenta que uma regulação clara “mitigaria riscos e colocaria o Brasil em posição de liderança financeira global, atraindo investimentos e promovendo inclusão”. Em suma, há um esforço coordenado entre Executivo, BC e Legislativo para enquadrar as stablecoins tanto via normas infralegais quanto em lei formal.
Com esse pano de fundo histórico, fica evidente por que a CP 124/2025 é tão importante: ela conecta os pontos entre o câmbio tradicional e o mundo cripto, sinalizando que não haverá dois universos paralelos. A seguir, analisamos três camadas de impacto dessa proposta – do imediato (sobre empresas do setor), passando pelo desenho regulatório e competitividade, até as consequências estruturais para a soberania monetária e os trilhos financeiros digitais do país.
🌊Três graus de impacto
1º Grau — Operação sob eFX: o “atalho” some, o compliance sobe
No curto prazo, a prestação de serviços com stablecoins para fins internacionais passa a seguir o mesmo trilho do câmbio. Isso significa licenciamento obrigatório: quem hoje intermedeia remessas com stablecoins terá de ser instituição autorizada pelo Banco Central ou operar acoplado a uma. Os fluxos em reais migram para conta de depósito exclusiva do prestador de eFX, com liquidação por operação de câmbio formal, inclusive durante a fase de transição de quem estiver se regularizando. A rastreabilidade se torna integral, com reporte mensal ampliado ao regulador e códigos de finalidade específicos para identificar essas remessas. Na ponta do cliente, o custo passa a espelhar o do câmbio tradicional, com divulgação do Valor Efetivo Total. O escopo do eFX também se amplia para cobrir transferências ligadas a investimentos no Brasil e no exterior até um teto por transação. O efeito líquido é o fim da zona cinzenta operacional: aumenta o custo de compliance e cai a arbitragem regulatória, em troca de segurança jurídica e previsibilidade.
2º Grau — Mercado e regulação: campo nivelado e disputa de trilhos
Em um segundo nível, a proposta integra de vez o universo cripto ao perímetro financeiro oficial, reduzindo incentivos à arbitragem entre “mundo cripto” e “mundo FX”. Stablecoins deixam de ser um canal paralelo e passam a competir com produtos bancários regulados, como depósitos tokenizados, sob regras comparáveis de custo, transparência e controles de KYC/AML. A competição volta a se dar por produto, experiência e preço, e não por brechas de regulação. A padronização de autorização, conta exclusiva, VET e granularidade informacional facilita cooperação entre órgãos e qualifica as estatísticas cambiais e de capitais. No plano internacional, o Brasil se alinha a práticas que integram stablecoins sem proibi-las, preservando a inovação dentro de um perímetro prudencial claro. Para os players já regulados, o ambiente fica mais legível para escalar; para os demais, a estratégia passa a ser acoplar-se a instituições autorizadas ou buscar licença plena.
3º Grau — Estrutural e macro: soberania, estatística cambial e trilhos digitais do Real
Na camada estrutural, o enquadramento cambial fecha rotas informais de saída e entrada via stablecoins e melhora a capacidade do Estado de medir e gerir fluxos em moeda estrangeira, condição básica para política cambial e monetária eficaz. A combinação de conta exclusiva, reporte recorrente e codificação de finalidades reduz opacidade e facilita o enforcement sobre ilícitos financeiros sem sufocar a inovação. Ao permitir eFX ligado a investimentos e ao padronizar o reporte, o país prepara o terreno para interoperabilidade gradual entre soluções tokenizadas, incluindo stablecoins reguladas, depósitos tokenizados e, adiante, câmbio direto tokenizado no varejo e no atacado. O movimento é simultaneamente defensivo, ao proteger a base monetária do avanço de uma dolarização digital fora do radar, e habilitador, ao criar trilhos digitais para que o real circule em redes globais sob governança doméstica. Se bem calibrado, esse redesenho tende a reforçar a soberania monetária e a abrir espaço para que o real dispute relevância nos novos trilhos de liquidação 24/7, mantendo a inovação acoplada ao interesse público.
Referências externas recomendadas
Projeto de Lei 4308/2024 (Câmara dos Deputados) – Texto legislativo em análise que regulamenta o mercado de stablecoins no Brasil. O PL exige autorização do Banco Central para emissão de stablecoins lastreadas em moeda estrangeira (enquadrando-as como operação de câmbio), reserva integral de valor e monitoramento contra lavagem de dinheiro, reforçando a responsabilidade e transparência nesse mercado emergente.
“Stablecoins tiram depósitos dos bancos e ameaçam política monetária, diz Campos Neto” (Portal do Bitcoin) – Reportagem que resume as declarações de Roberto Campos Neto, ex-presidente do BC, sobre o impacto das stablecoins na economia tradicional. Campos Neto alerta que a popularização das stablecoins já reduz depósitos bancários e enfraquece a transmissão da política monetária, servindo como alternativa de poupança em dólar digital e ampliando a dolarização em países emergentes. Uma leitura essencial para entender os riscos macroeconômicos percebidos pelas autoridades.
Finsiders: Stablecoins trazem oportunidades a bancos e fintechs, mas também há riscos – Análise aprofundada (publicada em jul/2025) sobre as stablecoins, abordando tanto seu potencial revolucionário (pagamentos globais 24/7, integração financeira internacional) quanto os riscos e desafios. O texto destaca preocupações do BIS sobre fuga de capitais e soberania, a falta de transparência de algumas stablecoins e os esforços regulatórios em curso. Também traz perspectivas da indústria nacional, equilibrando otimismo com cautela informada. Um panorama abrangente para situar o Brasil no contexto das tendências globais de moedas estáveis.
🔗 Sinais do Sistema
Três links que reforçam (ou tensionam) a conversa:
🔎 SWIFT lança blockchain própria: A rede global de mensagens financeiras vai testar um ledger para liquidação tokenizada com bancos como BofA, Citi e NatWest — sinal de que o “mundo dos trilhos” tradicionais está se movendo para on-chain.
⚙️ Digital Euro ganha fornecedores: O BCE selecionou provedores para cinco componentes do euro digital na fase de preparação — passo concreto de engenharia e governança para um CBDC utilizável
👁️🗨️ GenAI no core bancário: O Bank of America ampliou o uso de IA generativa em tesouraria e atendimento corporativo (AskGPS e insights de mercados), sinalizando produtividade e “assistentes” internos como vantagem competitiva.
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