#009 Quando o Robô Fecha a Conta
Entre as muitas “buzzwords” do momento, poucas me instigam tanto quanto a ideia de máquinas fazendo negócios entre si. Enquanto boa parte do noticiário se prende a denúncias, manipulações de bots e promessas vazias de IA, prefiro desviar do ruído e observar o que realmente está mudando a estrutura do sistema financeiro. Não sou engenheiro de hardware nem evangelista de apocalipse robótico, mas me fascina o que acontece quando tiramos o humano do meio do pagamento e colocamos códigos, tokens e contratos inteligentes em seu lugar.
Nesta edição 9ª edição da TrendFi mergulho na Economia das Máquinas em Ação, mostrando como o protocolo AP2 da Google abre caminho para agentes autônomos comprarem por nós. Explico o contexto dos mandatos de intenção e de carrinho, o por que as grandes bandeiras e exchanges se alinharam em torno desse padrão e o sobre seu real impacto que vai além de acionar um assistente para comprar tênis. Também conecto o AP2 a iniciativas que parecem distantes, como os tokens bancários que permitem máquinas pagarem umas às outras offline e a avalanche de tokenização de ativos. Se as últimas edições sobre a Estratégia do JP Morgan para Web3 ou Tokenização de Ações te tirou da zona de conforto, prepare-se para uma conversa ainda mais provocativa sobre o momento em que robôs passam de consumidores a atores econômicos.
📌 Introdução
A Google acaba de lançar o Agent Payments Protocol (AP2), um protocolo aberto para que agentes baseados em IA possam comprar serviços em nome dos usuários. O anúncio, feito no blog da empresa em 16 de setembro de 2025, foi acompanhado por mais de 60 parceiros: de bandeiras de cartão a grandes varejistas e fintechs. A ideia é criar uma especificação comum que permita que quaisquer tipos de agentes, como: modelos generativos, bots de varejo, assistentes do celular ou dispositivos industriais, conversem com gateways, emissores e estabeleçam responsabilidades. Como esse movimento pode alterar o mercado de pagamentos? A seguir analisamos o lançamento e o pano de fundo de pagamentos entre máquinas.
O que é o AP2?
O protocolo define três grandes pilares:
Autorização: o consumidor precisa conceder ao agente um mandato de intenção (Intent Mandate), documento digital assinável que dá permissão para pesquisar produtos e iniciar pedidos. Em seguida, na hora de fechar a compra, um mandato de carrinho (Cart Mandate) finaliza itens, preço e condições. Para compras totalmente automatizadas é necessário detalhar limites de valor e condições de compra; o objetivo é deixar rastros auditáveis.
Autenticidade: as mensagens trocadas entre agentes e provedores são assinadas criptograficamente, garantindo que o pedido veio do agente autorizado e não foi adulterado.
Accountability: cada transação tem documentação que deixa claro quem é responsável em caso de falha, disputas ou fraude.
A especificação é agnóstica ao meio de pagamento. Ela cobre cartões de crédito/débito, transferências bancárias em tempo real e stablecoins. A Google, a Coinbase e a MetaMask anunciaram uma extensão chamada A2A x402 para integrar o protocolo de remessas em criptomoedas (x402) ao AP2, permitindo pagamentos com stablecoins. O projeto ainda cita como colaboradores American Express, Mastercard, PayPal, Ant International, Airwallex, Revolut, Salesforce e outros.
Exemplos ilustram o potencial: um agente poderia planejar uma viagem, consultar diferentes prestadores e, com o aval do usuário, reservar voo, hotel e transporte em uma só instrução. Outro exemplo envolve compras programadas; o usuário determina um limite de preço ou condições (por exemplo, adquirir tênis quando houver promoção), e o agente executa a compra com base nesse mandato.
O estado da arte dos pagamentos máquina a máquina
O AP2 surge em um contexto mais amplo de pagamentos entre máquinas (M2M). Projetos recentes apontam para a digitalização da moeda bancária e a necessidade de pagamentos offline. Um consórcio alemão formado pela DG Nexolution, DZ Bank, Festo e Giesecke+Devrient desenvolveu um protótipo em que máquinas com carteiras digitais armazenam tokens de dinheiro e podem transacionar entre si sem conexão à internet. Esses deposit tokens ou Commercial Bank Money Tokens (CBMTs) são representações digitais de depósitos bancários em blockchain, permitindo transações programáveis e seguras. Cada banco emite seus tokens e eles interoperam com os de outros bancos, possibilitando pagamentos rápidos e sem intermediários. A solução traz pagamentos via Ethernet, Bluetooth ou NFC e é crucial para ambientes remotos ou de alta segurança.
Os especialistas afirmam que essas capacidades offline são necessárias porque máquinas em movimento, em cadeias de suprimentos ou áreas industriais podem ficar sem conexão. Ao armazenar fundos de forma segura em carteiras offline, dispositivos conseguem pagar autonomamente, garantindo continuidade das operações. Programas de pay‑per‑use e licenciamento baseado em uso tornam‑se possíveis com tokenização. Essa abordagem pode complementar o AP2, que foca nas regras de autorização e comunicação; juntos, os protocolos de pagamentos entre agentes e tokens bancários permitem transações automatizadas em contextos online e offline.
Três graus de impacto
1 - Impacto imediato: prova de conceito e adesão das big techs
A Google leva vantagem ao propor um padrão open source que já nasce apoiado por redes de cartões, bancos e criptoparceiros. A adesão rápida garante interoperabilidade entre players. Para as empresas, o protocolo facilita integrar assistentes e LLMs aos seus sistemas de pagamento, reduzindo custos de integração. Já os consumidores se beneficiam de experiências mais fluidas: fazer reservas, comprar insumos ou renovar assinaturas poderá ocorrer por voz ou chat com segurança. A exigência de mandatários (Intent Mandate e Cart Mandate) cria barreiras contra fraudes, mas pode exigir educação dos usuários.
2 - Mercado e regulação: ajustes para um mundo de agentes
No médio prazo, carteiras digitais, gateways e adquirentes terão de adaptar seus sistemas para aceitar mandatos digitais e garantir a autenticidade das mensagens. Com mais de 60 parceiros, a pressão por normalização regulatória aumentará. A integração com stablecoins e tokens bancários coloca agências reguladoras diante de questões de custódia, lavagem de dinheiro e proteção ao consumidor. Autoridades como a FCA já estão discutindo aplicar o Handbook a atividades de criptoativos e receberão comentários sobre sua consulta pública até novembro de 2025. O Banco da Inglaterra, por sua vez, defende exercícios conjuntos de resiliência operacional e alerta para a adoção de criptografia resistente a computadores quânticos, requisito relevante para manter a segurança dos mandatos digitais.
3 - Sistêmico e inovação: economia programável
A convergência entre o AP2 e iniciativas como CBMTs projeta uma economia programável. Máquinas poderão contratar serviços umas das outras, pagar por uso e até negociar horários de produção ou consumo de energia. Tokenização de depósitos, stablecoins e credenciais descentralizadas possibilitam liquidação instantânea e smart contracts automáticos. O ecossistema tende a se conectar a outras infraestruturas abertas, como open banking e open data, ampliando a competição e a personalização. Ao mesmo tempo, surgem riscos sistêmicos: falhas em modelos de IA podem gerar compras indesejadas; ataques a carteiras offline podem comprometer cadeias industriais. Reguladores precisarão equilibrar inovação e segurança, talvez exigindo auditorias constantes e limites dinâmicos para agentes.
🔗 Sinais do Sistema
Três links que reforçam (ou tensionam) a conversa:
Nasdaq propõe tokenizar ações e ETPs – Em 8 de setembro, a bolsa norte-americana apresentou à SEC um pedido para permitir que membros e investidores tokenizem ações e fundos negociados em bolsa (ETPs) listados no Nasdaq. A proposta prevê um modelo híbrido em que o investidor escolhe liquidar em forma tradicional ou tokenizada; a compensação seria feita pela Depository Trust Corporation (DTC) e os tokens manteriam o mesmo CUSIP e direitos das ações originais. A iniciativa busca integrar ativos digitais à infraestrutura existente, preservando estabilidade e proteção ao investidor.
BlackRock quer tokenizar ETFs – Segundo fontes do Bloomberg, a maior gestora de ativos do mundo estuda levar ETFs lastreados em ações para a blockchain. A tokenização permitiria negociação 24 horas, acesso global e uso desses ativos como garantia em redes de criptomoedas. A aposta vem após o sucesso do fundo tokenizado BlackRock USD Institutional Digital Liquidity (BUIDL), que distribuiu mais de US$ 2 milhões em dividendos em quatro meses. Larry Fink, CEO da BlackRock, afirma que “todos os ativos poderão ser tokenizados”, mas reconhece desafios regulatórios e operacionais.
CVM revisará limites para tokenização de dívidas – A Comissão de Valores Mobiliários brasileira abrirá, até o fim de setembro, consulta pública para revisar a Resolução 88, que regula o crowdfunding de investimentos. O objetivo é aumentar o limite de captação e a receita das empresas e incluir novos participantes. O mercado de tokens de dívida cresceu de R$ 7 milhões em 2022 para R$ 1,35 bilhão em 2024 e já supera R$ 2,2 bilhões em 2025. Propostas em discussão sugerem elevar a receita do emissor para R$ 250 milhões e permitir captações de até R$ 150 milhões; também se discute liberar recursos antes de atingir dois terços da oferta e dispensar agente fiduciário quando a plataforma supervisionar a operação.
💬 E aí, o que você viu?
O lançamento do AP2 demonstra que pagamentos entre máquinas deixarão de ser um conceito futurista para tornar‑se infraestrutura. As iniciativas de tokenização e resiliência mostram que o setor financeiro vive um momento de construção de pilares técnicos e regulatórios para a economia de agentes. Você confiaria um orçamento mensal a um assistente ou robô?
