#007 Tokenização de Ações e ETFs Acelera sem Pedir Licença
Entre manchetes sobre fraudes e investigações, o mercado financeiro brasileiro voltou às páginas policiais. Em vez de surfar na onda de comentaristas de ocasião, prefiro reconhecer meus limites: cibersegurança e crime financeiro exigem um domínio técnico que não me proponho a ter. Acredito, sim, que blockchain e privacidade podem reduzir esses desvios, mas essa é uma conversa para outro momento.
Nesta sétima edição, voltamos ao que a TrendFi faz de melhor: detectar os sinais de transformação antes de virarem senso comum. Trago uma pesquisa original sobre a tokenização na bolsa de valores – quem já está tokenizando, quais ativos estão sendo replicados em blockchain e por que isso importa para o futuro do mercado. De iniciativas globais como o ecossistema xStocks e os mercados institucionais da Aave e Ondo ao papel pioneiro de Bee4 e Liqi no Brasil, mapeio as forças que estão aproximando Wall Street do DeFi.
Se a última edição sobre a estratégia Web3 do JP Morgan te provocou, prepare-se para mais uma leitura cheia de insights.
📌 Introdução
A corrida para levar as grandes empresas de Wall Street para o blockchain virou avalanche. Em questão de semanas, diversas plataformas anunciaram ações e ETFs tokenizados que podem ser comprados e vendidos 24/7, diretamente da carteira de cripto. O movimento ganhou tração com parcerias envolvendo exchanges globais (Kraken, Bybit, KuCoin, Bitget e Robinhood), a adopção de oráculos de dados em tempo real pela Chainlink Labs e o lançamento de mercados institucionais como o Horizon da Aave Labs. No Brasil, enquanto o sandbox da CVM criou a Bee4 que transforma pequenas empresas em cases de IPO tokenizado, Liqi fecha acordos bilionários e a CVM prepara normas para ampliar o mercado.
A seguir, destrinchamos os principais anúncios dos últimos 360 dias e como eles reposicionam o mercado de capitais.
Linha do tempo da tokenização (últimos 12 meses)
Ago/24: Chainlink Data Streams – A rede de oráculos passou a fornecer preços de ações e ETFs dos EUA com atualização sub‑segundo para 37 blockchains. As streams combinam dados de diversas fontes, são assinadas criptograficamente e permitem pausar negociações fora do horário regular, habilitando derivativos e tokens sintéticos com garantia de integridade;
Fev/25: Bee4 realiza primeiro IPO em blockchain – A Bee4, participante do sandbox de tokenização da CVM, realizou o primeiro IPO totalmente em blockchain no Brasil. A startup Roda Conveniência, líder em mini-mercados autônomos, tornou‑se a quinta empresa listada na Bee4 e a primeira com distribuição conjunta pelas corretoras Genial Investimentos e Itaú Private Bank. O mercado Bee4 aceita empresas com faturamento entre R$ 10 e 300 milhões e possibilita que pequenas e médias empresas realizem IPOs e negociem suas ações;
Mar/25: Aave lança o mercado Horizon – O protocolo DeFi inaugurou o Horizon, mercado de empréstimos para investidores institucionais onde é possível depositar ativos do mundo real (RWA), como títulos do Tesouro ou CLOs AAA, e tomar stablecoins. A operação conta com curadoria de gestores de risco e dados de NAV fornecidos pela Chainlink e abre caminho para o uso produtivo de RWAs dentro do DeFi;
Abr/25: Liqi & XDC – A brasileira Liqi Digital Assets firmou acordo para emitir US$ 500 milhões em RWAs na blockchain XDC, incluindo crédito privado, CRIs/CRAs, debêntures e ativos imobiliários. O objetivo é criar uma alternativa moderna aos FIDCs, com mais liquidez e transparência; a primeira emissão estava prevista para ocorrer em 90 dias;
Abr/25: BEE4 Alcança licença definitiva da CVM - A empresa conseguiu a licença para atuação no mercado de balcão organizado, aliado a licença de depositária central, permitirá que sua atuação como ambiente de mercado regulado para a negociação de produtos de renda fixa e variável, como debêntures, notas comerciais e ações, focando primariamente em valores mobiliários de PMEs
Mai/25: Kraken expande ações tokenizadas – A exchange Kraken passou a oferecer mais de 50 ações e ETFs tokenizados, emitidos pela Backed, com negociação 24/7 para clientes fora dos EUA. Os tokens, chamados de xStocks, são emitidos na Solana e podem ser resgatados por dinheiro na proporção 1:1. A Kraken informou ao WSJ que trabalha com reguladores para garantir a legalidade em cada país;
Jun/25: xStocks ao vivo – A suíça Backed Finance AG lançou oficialmente o xStocks, plataforma de ações tokenizadas, com mais de 60 ações e ETFs (Apple, Amazon, Microsoft, S&P 500 ETF etc.) disponíveis em Bybit, Kraken e aplicativos DeFi na Solana. Os tokens têm lastro 1:1 em ações custodiadas, são negociados 24/7 e utilizam a infraestrutura da Chainlink para preços e prova de reservas;
Jul/25: Bitget Onchain integra xStocks – A exchange Bitget adicionou xStocks à sua plataforma Onchain, permitindo que clientes negociem ações como TSLAX (Tesla), NVDAX (Nvidia), MSTRX (MicroStrategy), SPYX (ETF S&P 500), CRCLX (Circle) e AAPLX (Apple) diretamente de suas contas, com liquidação imediata e sem necessidade de carteiras externas. A CEO Gracy Chen definiu o movimento como parte da convergência entre CeFi e DeFi, em que cripto, ações e finanças tradicionais coexistem;
Jul/25: KuCoin une‑se à xStocks – A exchange KuCoin anunciou a listagem de xStocks e tornou‑se membro da xStocks Alliance. O primeiro lote inclui SPYx (ETF S&P 500), CRCLx (Circle), TSLAX (Tesla), MSTRx (MicroStrategy) e NVDAX (Nvidia), todos lastreados 1:1 por ações depositadas em bancos regulados e emitidos na blockchain Solana A KuCoin destacou que a plataforma serve mais de 41 milhões de usuários em mais de 200 países e que os tokens serão acompanhados por prova de reservas via Chainlink;
Ago/25: CVM anuncia nova resolução – A Comissão de Valores Mobiliários (CVM) informou que prepara uma resolução para ampliar o limite de captação e o número de participantes autorizados a emitir valores mobiliários tokenizados. A proposta inclui permitir que securitizadoras, produtores rurais, cooperativas e empresas maiores participem de ofertas de tokens, indo além do limite de R$ 15 milhões vigente;
Ago/25: Críticas dos reguladores – A World Federation of Exchanges (WFE) enviou carta ao SEC, ESMA e IOSCO alertando que ações tokenizadas são “mimics” que não atingem os padrões de proteção ao investidor. A entidade apontou que ofertas de Robinhood, Kraken, Bybit e Republic são derivativos ou empréstimos com risco de liquidez e arbitragem regulatória, e defendeu que os tokens deveriam seguir o modelo de ações negociadas em mercados organizados;
Set/25: Ondo GM – A Ondo Finance, após apontar que modelos de ações tokenizadas sofrem com falta de liquidez (um ativo da Apple tinha apenas US$ 195 de profundidade para slippage de 2% e negociava 14,92% acima do preço, anunciou o lançamento do Ondo GM, plataforma que permitirá cunhar tokens de ações e ETFs norte‑americanos de forma instantânea e com acesso direto à liquidez de bolsas tradicionais. Anúncio feito em 22/08 via X (Twitter).
Estratégias e impactos
Expansão global do xStocks
O modelo da Backed Finance é baseado em custódia 1:1 e emissão de tokens lastreados em ações de companhias de capital aberto e ETFs. Ao integrar‑se com grandes exchanges (Bybit, Kraken, KuCoin, Bitget) e com protocolos DeFi como Kamino, Raydium e Jupiter, a empresa criou um ecossistema que permite usar ações tokenizadas como colateral, prover liquidez em AMMs e realizar empréstimos descentralizados. O ponto central da estratégia é permitir negociação contínua, liquidez instantânea e uso programável das ações, algo inviável no mercado tradicional. A adesão da Chainlink como provedor oficial de dados e prova de reservas confere confiança e transparência adicional.
O impacto imediato é ampliar o acesso a ações e ETFs para investidores de regiões onde o acesso às bolsas norte‑americanas é limitado. Usuários podem comprar frações de ações com stablecoins e utilizá‑las em aplicações DeFi para obter rendimento, diversificar portfolios ou contrair empréstimos. Para as exchanges, os tokens abrem um novo fluxo de receita e fortalecem a proposta de “super‑app de ativos” — negociação de cripto e ações num único lugar.
No entanto, o modelo ainda enfrenta desafios. Reguladores questionam a natureza jurídica dos tokens — muitos funcionam como contratos de dívida ou derivativos, não concedendo direitos de voto, e dependem da solvência das SPVs que mantêm as ações em custódia. A carta da WFE expõe temores de liquidez insuficiente e arbitragem regulatória. Além disso, os tokens são oferecidos apenas fora dos EUA e alguns países por questões regulatórias.
Oráculos e infraestrutura de dados
A Chainlink desempenha papel decisivo ao prover Data Streams de ações e ETFs com latência sub‑segundo e verificação de assinaturas, permitindo que contratos inteligentes calculem valores de NAV e executem liquidações automáticas. A integração com o Cross‑Chain Interoperability Protocol (CCIP) e com o Proof of Reserve abre caminho para que tokens possam migrar para diversas blockchains mantendo a garantia de que há ações reais depositadas. Esse padrão de infraestrutura é essencial para escalar a tokenização sem repetir problemas de oráculos lentos e manipulações de preço.
DeFi institucional e liquidez
O Horizon da Aave e o Ondo GM apontam para o mesmo destino: unir o mercado de capitais ao DeFi. O Horizon permite que investidores qualificados depositem títulos do Tesouro, CLOs e outros RWAs para tomar stablecoins, com gestão de risco e informações de preço fornecidas por oráculos Já a Ondo identificou que modelos existentes sofrem com liquidez fraca — um token de Apple tinha apenas US$ 195 de profundidade e preço 14,92% acima do justo — e propôs um serviço em que a cunhagem e o resgate de ações tokenizadas é instantânea, usando liquidez da própria bolsa para assegurar preço e arbitragem eficiente.
Com esses modelos, o DeFi deixa de depender exclusivamente de criptoativos voláteis e passa a ancorar‑se em ativos com fluxo de caixa real. A expectativa é que stablecoins e protocolos de empréstimo passem a aceitar ações tokenizadas como colateral, abrindo novas estratégias de arbitragem e hedge.
Panorama brasileiro
O Brasil ainda não possui ações de grandes empresas listadas em blockchains públicas, mas o país desponta como laboratório de tokenização. A Bee4 oferece um mercado regulado para PMEs emitirem e negociarem ações tokenizadas: em fevereiro, a Roda Conveniência levantou recursos via IPO em blockchain, tornando‑se a quinta companhia listada na plataforma. A Bee4 atende empresas com faturamento de R$ 10 a 300 milhões, permitindo que captem recursos com menor custo e que investidores comprem frações de negócios promissores.
A Liqi, por sua vez, firmou acordo de US$ 500 milhões com a XDC Network para tokenizar crédito, dívida corporativa e ativos imobiliários. O mercado brasileiro já mobiliza cerca de R$ 440 bilhões em tokenização, especialmente em modelos de crowdfunding, e a CVM prepara nova resolução para aumentar os limites de captação e incluir securitizadoras, cooperativas e produtores rurais. Ao mesmo tempo, a revista Infomoney registrou que empresas brasileiras tokenizaram mais de R$ 1 bilhão entre 2019 e janeiro de 2024, num total de 6 mil projetos que variam de dívidas de motéis a clínicas de reprodução assistida.
Conclusão
A última edição da TrendFi mostrou como o JP Morgan construiu sua estratégia de blockchain ao longo de uma década. Agora assistimos a uma corrida acelerada para tokenizar ações e ETFs, impulsionada por uma combinação de infraestrutura madura (oráculos, custódia, cross‑chain), apetite das exchanges e pressão de investidores por acesso global. xStocks e iniciativas similares democratizam o acesso e dão liquidez contínua a ativos antes restritos, mas ainda esbarram em questões regulatórias e precisam provar que conseguem replicar com fidelidade o comportamento dos mercados tradicionais.
No Brasil, a Bee4 e a Liqi colocam o país no mapa das tokenizações de ativos reais, enquanto a CVM se prepara para regularizar e ampliar o escopo de emissões.
A convergência entre finanças tradicionais e DeFi parece inevitável, e as ações tokenizadas se tornaram o catalisador perfeito. Se os desafios de liquidez, compliance e governança forem superados, a promessa de negociar uma fração de Apple a qualquer hora, usá‑la como colateral ou enviá‑la para outra pessoa com a mesma facilidade de um PIX pode mudar para sempre a maneira como investimos.
🔗 Sinais do Sistema
Três links que reforçam (ou tensionam) a conversa:
EUA levarão PIB para blockchain – O Departamento de Comércio dos EUA anunciou que passará a publicar dados de PIB e índice PCE diretamente em blockchains, selecionando Chainlink e Pyth como oráculos oficiais. A ideia é tornar as estatísticas econômicas tamper‑proof e utilizáveis em smart contracts e mercados de previsão;
Preocupações com stablecoins – O ex‑presidente do Banco Central da China, Zhou Xiaochuan, publicou artigo alertando que stablecoins podem ter efeito multiplicador de moeda, criando um volume sujeito a risco maior que o valor emitido. Ele defende que a avaliação dos prós e contras das stablecoins seja mais holística e considere riscos de corrida bancária;
Ant usa Kinexys para câmbio 24/7 – A Ant International, afiliada da Alipay, tornou‑se uma das primeiras empresas asiáticas a utilizar a plataforma Kinexys da JP Morgan para liquidar câmbio em tempo real. A solução permite transações em dólares, euros e libras 24/7, eliminando janelas de corte e aumentando a eficiência dos pagamentos cross‑border.
💬 E aí, o que você viu?
Qual anúncio desta edição mais te provoca: o ecossistema xStocks levando Wall Street ao DeFi, a inovação dos oráculos da Chainlink, o surgimento do mercado Horizon/Ave GM ou o avanço brasileiro com Bee4 e Liqi?
Deixe seu insight nos comentários ou mande uma mensagem. Se curtiu, compartilhe com alguém que precisa saber o que está sendo construindo no futuro da economia digital.
